quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Considerações sobre (a prática de) Yoga


A vida é como uma montanha-russa; uma sucessão constante de momentos felizes e tristes que experienciamos. Não há maneira de se viver a vida de outra forma.
Por sua vez, estes momentos de felicidade e tristeza são estabelecidos por nossos gostos e aversões ao longo da vida.
Naturalmente vamos na direção das experiências agradáveis. Pois, é legitimo para qualquer ser humano, a busca da felicidade.
Na linguagem dos Vedas, esta felicidade está na forma de três objetivos fundamentais (puruṣārthas): artha (segurança), kāma (prazer) e dharma (reconhecimento).
Basicamente, podemos passar uma vida inteira buscando por estas coisas. Como foi dito antes, é legítimo. Enquanto aquilo que buscamos nos preenche momentaneamente nos atende, não enxergamos nenhum problema.
Isto é chamado Saṁsāra; que é definido em sânscrito da seguite forma: samsarati iti saṁsārah. Ou seja, saṁsāra é aquilo que flui muito bem.
De fato, um problema se apresenta somente quando um destes puruṣārthas não é mais capaz de nos atender. E se olharmos objetivamente, vamos notar que o que acontece, de verdade, é isto. Estamos correndo sempre atrás de nossos rabos: preenchendo o vazio deixado por um desejo anterior, que foi realizado, por um novo, que desejo agora.
Num destes momentos, geralmente, relacionados à tristeza, se estabelece um questionamento fundamental sobre quem somos e como podemos preencher esta sensação constante de insatisfação.
É neste ponto que brilha o quarto puruṣārtha: mokṣa, a liberdade da sensação de que estou condicionado à alguma situação para ser feliz.

O estudo do Yoga se inicia quando este questionamento se estabelece. E quando este se estabelece, o praticante é, de fato, um mumukṣu, ou alguém que tem o desejo pela liberdade (de todos os condicionamentos), mumukṣutvam.       
Esta condição está exposta em alguns textos através da palavra atha. Como no primeiro sūtra de Patañjali ou no primeiro mantra da kaivalya upaniṣad.
A palavra atha, geralmente é traduzida como “agora”, mas no contexto destas escrituras, elas devem ser compreendidas como “então”, indicando algo que aconteceu antes, e que será resolvido agora.
Este “então” não indica uma mera ação que será realizada após uma outra. Do tipo: me levanto e agora me sento e novamente me levanto. Há algo bastante importante que se estabelece para que o estudo do Yoga torne-se possível e significante. Atha significa sādhana catuṣṭaya sampatti-anantaram, ou seja, “então, conquistando estas quatro qualificações, por completo”, me torno um adhikari; alguém maduro para receber o ensinamento.

Mumukṣus, ou, desejosos pelo o autoconhecimento, devem possuir estas quatro qualificações. Elas são: viveka, o discernimento entre aquilo que é perene e aquilo que é efêmero. Vairagya, o desapego. Ṣatsampatti, as seis qualidade de quietude, comando sobre os sentidos, o desapego ao resultado das próprias ações, perseverança, confiança e estabilidade da mente. E, obviamente, mumukṣutvam, o desejo por liberdade. Muitas destas qualidades são conquistadas ao longo do estudo, num processo de amadurecimento. Mas o simples fato de se aproximar de um professor, por conta própria, com este desejo por se conhecer melhor, já o qualifica como um mumukṣu.

Atha yogānuśāsanam ||1||

Portanto, tendo compreendido, todo exposto acima, vamos por em prática:
Falamos sobre o fato de buscarmos o Yoga por conta própria. Falamos sobre a busca do Yoga, como uma ferramenta para responder a este vazio existencial. E, portanto, temos que fazer uma importante observação sobre aquilo que encontraremos numa prática de Yoga.
A prática de Yoga, como o próprio nome diz, trata de questões práticas, que no nosso caso,  é tudo aquilo que está relacionado ao corpo e mente. Portanto a sensação gostosa que qualquer praticante de Yoga experimenta ao fim de uma prática, não é um fim nela mesma. Apenas uma sensação que se experimenta e que logo dará lugar a uma nova experiência/sensação/sentimento relacionada à uma nova experiência pós-prática.
O que um yogi sincero busca, não é uma sensação, pois sabe que a sensação é uma reação à uma experiência; e uma experiência tem fim.
Um yogi busca aquilo que definitivamente traga fim a seu sofrimento. E isto, segundo os Vedas, que são a base da Tradição yoguica, não é fruto de uma ação/ experiência. Portanto, como praticante de Yoga, devo entender que as ações  não têm a capacidade real de me livrar deste desconforto incessante oriundo da sensação de insatisfação.
Como cita a Rama Gītā: “Portanto, que aqueles de coração puro aprendam a abandonar a ânsia pelo fruto de todos os karmas. Sendo as ações contrárias ao Conhecimento, sua combinação com ele não é possível. Apaziguando a atividade dos sentidos e da mente, o yogi deve se engajar na contemplação do Ser.”
Uma prática é essencial para ajudar nesta investigação sobre mim mesmo. A partir de um processo de desconstrução (neti neti) de uma aparente identidade contruida ao longo de uma vida.
Através deste exercício, conseguimos enxergar determinadas qualidades as quais nos atribuímos e nos identificamos. Sejam relacionadas ao corpo-mente, objetos externos, papéis sociais ou até mesmo situações e condições do dia a dia.
Quando compreendemos que tudo isto não representa aquilo que sou essencialmente, consigo me soltar de todas elas.
Isto é o que Patañjali quer dizer ao definir a palavra Yoga:

yogaścittavṛttinirodhaḥ || 2 ||
“Yoga é a cessação [da identificação] com os cittavṛttis”.

Aqui Patañjali define o que é esta disciplina chamada Yoga. Normalmente este sūtra é traduzido como o “controle da mente”, mas novamente temos que atentar para o que é este controle. Na palavra nirodhah, está o radical rudh. Rudh significa controlar sem esforço. Controlar naturalmente. Usando o esforço quando necessário. Mas mesmo entendendo este radical, a compreensão deste sūtra fica um pouco superficial.
Estes cittavrttis, que são os objetos na forma de pensamentos e emoções com os quais nos identificamos constantemente.

Na Bhagavad Gītā, Kṛṣṇa define o Yoga da seguinte forma:

Tam vidyādduhkhasaṁyogaviyogaṁ yogasañjñitam sa niscayena yoktavyo yogonirvinnacetasā. (Cap 6, 23)

“Que seja sabido que esta dissociação da associação com a dor é chamada Yoga. Yoga deve ser seguido com determinação e sem uma mente que tenha indiferença.” O sofrimento é fruto de nossa identificação com os vrttis (julgamentos, pensamentos, projeções...). Quando me identifico com um destes objetos, automaticamente me vejo limitado à forma e atributo que vem junto deste. Existem dois tipos de objetos criados pela mente, citados no décimo capítulo da Pancadaśi:

Antarmukhahamityesa vrttiḥ kartaramullikhet Bahirmukhedamityeṣa bahyam vastvidamullikhet (6) 

“O pensamento interno da mente (na forma de) “eu” faz aparecer o agente da ação. O (pensamento) externo (na forma de) “isto” faz aparecer o objeto externo.”

Enquanto estou identificado com estes objetos, não enxergo aquilo que é a base destes mesmos objetos, que sou eu. Então para realizar a minha natureza, é necessário ir além das identificações com os objetos. Por isso este controle da mente não significa pensar de uma forma definida, ou parar de pensar. Mas não se associar aos pensamentos ou sentimentos. Não assumir as formas deles. Esta é a disciplina!
A questão fundamental para o autoconhecimento é dissolver as identificações com todos os objetos com os quais nos relacionamos. Este é um exercicio bastante difícil de ser realizado, pois temos na mente, uma idéia que se os pensamentos desaperecessem, tudo desapareceria junto.
Porém, isto não é um fato. Já que toda vez que dormimos e não estamos sonhando, todos os objetos desaparecem da nossa percepção; inclusive pensamentos e emoções. Mas, nós, não deixamos de existir nesta ausencia da percepção dos objetos. Pelo contrário, ao despertarmos, temos o registro, na mente, desta ausência.
Concluindo este raciocínio, Patañjali diz que ao eliminarmos todas estas identificações, chegamos à conclusão de que o Eu, permanence.
Este entendimento em relação a tudo aquilo com o que antes me identificava, é o primeiro passo, neste amadurecimento da mente para uma nova relação com o mundo e comigo mesmo.

Através desta lógica, contida nas escrituras, é obvio que não podemos pensar que uma simples prática de āsanas, prāṇāyāmas, ou até mesmo de meditação, possam resolver este problema fundamental, que é a ignorância em relação à minha própria natureza. Porque esta natureza é revelada pelo conhecimento, e não pela ação.
É uma ideia fantasiosa pensar que uma refeição irá saciar definitivamente a fome. Da mesma forma, pensar que um copo d'água saciará a sede definitivamente.
Assim sendo (da mesma maneira), é fantasioso pensar que conquistar uma determinada forma do corpo ou pela ação do corpo trará uma satisfação definitiva em sua relação com ele.
Toda a ação já traz um problema em si: a sua limitação no tempo-espaço. O resultado de uma ação dura apenas por um período de tempo e em algum lugar no espaço. Portanto o corpo não pode receber a responsabilidade de te dar esta satisfação definitiva, já que ele é, naturalmente limitado.
O que deve ser levado em conta é um conjunto de práticas que nos amadurece, junto com um constante estudo que conduz ao conhecimento de si mesmo.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Yoga e performance



Este artigo foi inspirado em algo que ouvi de um outro praticante de Yoga, que me criticou, ao comparar os riscos de lesão que posso ter na prática do triathlon, para poder justificar as lesões que aquele praticante tinha na sua rotina de āsanas.

Muitos praticantes e professores confundem Esporte com Yoga. Enquanto um, tem como objetivo o bem estar, saude e performance. O outro, tem como resultado o bem estar geral, mas, acima de tudo, o seu objetivo não é dor e tampouco performance; e sim, o autoconhecimento.

No meu ponto de vista, embora não seja o objetivo trazer um aumento na performance para um indivíduo em relação às suas tarefas e trabalhos, podemos nos beneficiar bastante de algumas técnicas específicas, contidas neste grande corpo de conhecimento que é o Yoga.
Neste caso, deixando a maior parte de seu conteúdo de reflexão, e também espiritual, focamos em uma parte bastante especifica, que é: o que posso tirar de proveito de tudo aquilo que se refere à parte física do Yoga para ajudar nas coisas que preciso fazer no dia a dia?

Pense na sua profissão, ou no seu hobby. Como o Yoga se encaixa com tudo isto? Relembrando, que estamos apenas falando sobre algumas técnicas especificas.
Um atleta, normalmente, já sobrecarrega demais o próprio corpo com exaustivos treinos. Portanto, a prática de Yoga deve ser proposta, não para exigir ainda mais. Por outro lado, deve e pode ajudar na recuperação.

Vou citar aqui, apenas três técnicas, que já são bastante evidentes pra qualquer praticante de Yoga e que também podem ser aplicadas à atletas, mesmo que estes, não sejam, de fato, praticantes de Yoga.

Em primeiro lugar, podemos falar das posturas físicas, que são chamadas de ásanas. Não vamos falar sobre aquelas posturas complicadas que podem ser vistas em vídeos ou revistas. Vamos falar do “feijão com arroz”.

Uma prática física de Yoga trabalha algumas valências específicas do corpo: força, flexibilidade, estabilidade. As posturas sugeridas, normalmente são executadas com algum tempo de permanência (isometria). Isso permite que o indivíduo possa ajustar o corpo na postura, dentro das suas possibilidades. Sempre priorizando o alinhamento do corpo, de forma que sua musculatura seja trabalhada de forma intensa, porém, não violenta. E ao mesmo tempo, trazendo conforto e segurança para as articulações. Criando um equilíbrio nesta equação: força, flexibilidade e equilíbrio.

Estes trabalhos isométricos e de equilibrio, promovem com grande eficiência, a estabilização de articulações demasiadamente usadas, na corrida, por exemplo. Uma postura em pé, pode trazer uma grande conscientização de toda a musculatura e articulações  de membros inferiores. Ensinando ao atleta a proteger pontos mais frágeis do seu corpo e até mesmo a fortalece-los.

E por um outro lado, o trabalho de flexibilidade e alongamento, quase sempre deixado de lado pela maioria dos atletas, pode auxiliar no relaxamento do corpo. Na dissolução de pontos de tensão, que possuem grande potencial de se tornarem até mesmo lesões mais sérias.

Toda esta parte física da prática, nos conduz a um outro ponto interessante, que é sobre a forma de respirar.
A respiração é uma ação tão automática, que nunca paramos para reparar que ela está acontecendo, e ainda, como está acontecendo.
O hábito de respirar mal, de forma curta e superficial nos atrapalha bastante. Não temos fôlego para suportar uma atividade que demande grande oxigenação do corpo. E isso se revela na nossa dificuldade em conquistarmos uma maior resistência; seja para provas longas, ou até mesmo para sprints mais curtos. A frequência cardíaca fica bastante elevada, e ali, o atleta “quebra”.

Portanto, explorar as formas de respirar, deveria ser um exercício tão importante quanto a própria corrida. Dominar o movimento tanto do diafragma, quanto do abdome e entender aonde a respiração começa e termina, pode ser de grande ajuda.

E por ultimo, mas não menos importante, vamos falar sobre a mente. Sobre o emocional e a capacidade de transformar uma mente que tende a te sabotar em uma prova, em uma mente capaz de permanecer focada.
Isso envolve as duas técnicas faladas antes. Pense nisto como um exercício: você está se preparando para a sua corrida. Você tem um objetivo, e quer realiza-lo.  Partir daquele momento, você estabelece um compromisso consigo mesmo de que nada é mais importante que a sua corrida. Portanto, deixe da lado outros compromissos como trabalho, família, contas e etc. Agora é hora de correr!

Quando o teu foco está no presente, no caso, na corrida, certamente a sua atenção já está nos movimentos em que o seu corpo fará. Lembre-se das posturas que você fez na aula. Lembre-se que a cada dia, o seu corpo se apresenta de uma forma diferente; e se você quer o melhor dele (performance e segurança), adapte a corrida ao que é possível naquele dia. Principalmente se for um treino. Para que forçar?

A sua atenção também deve estar na respiração, de forma que o corpo suporte o esforço com a devida oxigenação. E também, para que não surjam aquelas dores desconfortáveis no abdome, devido à uma respiração inadequada.
Sem grandes esforços, já houve a transformação da mente, de um estado normalmente distraído para um estado de foco no objetivo.
Com estas três técnicas, muitas coisas podem ser transformadas na sua corrida.

Lembre-se: o Yoga não está focado no corpo, mas pode ajuda-lo. No Yoga, não há qualquer tipo de atitude exigente em relação a si mesmo. O que pode ser bem diferente da nossa atitude durante uma prova, já que o esporte pode ter este caráter.
Unir um pouco dos dois, talvez seja uma receita que te leve mais longe. Seja nos resultados que você busca ou numa vida atlética longeva.

Fica aqui o convite para a sua experiência. Boas práticas e boas corridas!

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Yoga sem rótulos



Aqueles que, em algum momento da história, foram contra algumas verdades tidas como absolutas, em seus tempos, acabaram queimados na fogueira. Começo este texto pelo final, pois hoje, ouvi esta frase em uma das aulas do Swamiji, e ela me relembrou algo que já estava com vontade de escrever.
Desde que comecei a estudar Vedanta, aqui na Índia, tenho observado o quanto ainda estamos distantes de compreendermos os objetivos que buscamos. Seja em uma pratica de yoga, seja em nossas vidas. O yoga, por exemplo, tornou-se moda, e além disso, também, tornou-se uma das maneiras que as pessoas estão utilizando para administrar suas carências emocionais. Não há nada de errado nisso. Mas é exatamente neste ponto, que nos tornamos vitimas fáceis daqueles que querem somente se aproveitar de nossa fragilidade.

Ao caminhar pelas ruas aqui, é fácil ouvir algum 'convite', alguma frase sugestiva de mendigos que se fingem de sadhus. Uma pessoa desavisada, um viajante desacompanhado, que esteja buscando desesperadamente respostas para suas perguntas, pode se deixar levar por estes falsos gurus.
Este e um problema mínimo, se levarmos em conta que as vítimas, somos nós, viajantes, e ainda em menor número porque estamos sempre desconfiados e acabamos nos afastando naturalmente destes perigos. Mas o ponto em que desejo chegar é mostrar que essa tendência se estendeu até os professores, dos mais aos menos famosos.
Não digo, também, que este problema foi gerado somente por eles, mas em boa parte por seus alunos e seguidores. Pessoas que começam a enaltecer tanto os seus professores, que de uma hora para outra, estes já aparecem com o titulo de ídolo, guruji, santo e até mesmo a personificação de Deus.
Aqui na Índia é fácil encontrar pessoas que arrastam multidões em suas aparições. Gurus popstars que enganam as pessoas com truques mágicos, ilusionismo, poções para rejuvenescimento e etc. Alguns poucos são verdadeiros, mas e preciso garimpar com bastante cuidado. Na maioria das vezes, acharemos os professores mais sinceros e verdadeiros, cercados apenas de poucos discípulos e em lugares sem ostentação.
Uma boa ferramenta para encontrá-los é, em primeiro lugar, um diálogo franco com os professores que já temos ou conhecemos. Não ter vergonha de perguntar sobre nenhum assunto e o mais importante, observar como estes professores se posicionam.
Nenhum professor é o dono da verdade. Mas como em qualquer profissão, é alguém especializado no assunto que certamente já traz uma bagagem de experiências. Em minha opinião, também sendo professor, acho muito bom indicarmos um caminho interessante para os alunos, mas ainda mais importante, é deixá-los livres para experimentar aquilo que eles mais se identifiquem na etapa da vida em que estão vivendo.
Se um praticante não se identifica com a maneira que conduzo minhas práticas, pode ser perfeitamente feliz com outros professores. Outra boa ferramenta para descobrir onde você está no mundo do yoga é usar a internet: professores, escolas, instituições, linhagens, tudo está na web. Este é um outro importante ponto a ser discutido: as linhagens. 
O Yoga como negócio.
Estas linhagens do yoga, no ocidente, acabaram se tornando rótulos. A indústria do yoga criou suas próprias "linhagens", que nada mais são do que marcas registradas. Como se o yoga fosse um produto que você pudesse escolher na prateleira de um supermercado. Estas linhagens, no melhor dos casos, remontam há 60 anos.
Então, novamente volto às raízes do yoga aqui na Índia. Pego de uma vez, três linhas: Karma, Bhakti e Jñana. O primeiro pensamento que nos vem é o de identificar o que cada uma destas palavras significa. Karma, que significa ação, o yoga da ação. Bhakti, que significa devoção. O yoga devocional. Jnana, que significa conhecimento. O yoga da disciplina do estudo dos textos sagrados, antigos, os Sastras. Em um instante já separamos aquilo que deveria ser inseparável. O yoga, a união, a junção.
Seria, então, possível praticar ásanas (ação) sem conhecimento? Sem devoção? Seria possível ser um devoto sem ação, ou sem conhecimento sobre aquilo que ele se dedica? Poderia haver conhecimento sem ação? É claro que a resposta é negativa. Não podemos separar os diferentes aspectos de uma prática de yoga.
E é este o grande problema dos dias de hoje. A onipresença de rótulos e marcas registradas que compartimentam o mundo do yoga. Principalmente o Hatha Yoga. Em países onde o número de praticantes de yoga se multiplicou, ele se tornou um grande negócio. Algumas escolas que mantinham o verdadeiro espírito do yoga foram perdendo espaço para associações poderosas, promovendo idéias de certos professores ou "mestres".
Nestes locais a meta não é mais o samadhi, mas o lucro líquido, o sorriso no rosto do cliente. Estes são os templos dos 'novos' gurus. O yoga foi perdendo a sua essência e se adaptando aos horários e gostos dos "clientes". Principalmente nestes lugares, se torna difícil manter um aluno sentado para simplesmente respirar ou meditar. Ele já foi ali com intuito de suar ou pelo menos de ficar de cabeça para baixo. 
A questão dos rótulos 
Hoje em dia, a ansiedade no mundo do yoga por usar rótulos chegou ao extremo. Novos aspirantes a 'guru' precisam ganhar uma fatia do mercado e se debruçam sobre o dicionário de sânscrito em busca de um novo nome, uma nova etiqueta essencial para uma nova fórmula de sucesso. Depois, saem correndo para o Departamento de Registro de Marcas e Patentes para se apoderar desse nome antes que mais alguém o faça.
Assim testemunhamos o nascimento de 'formas, métodos e tradições de yoga' que nada mais são que simples marcas registradas. Segundo Swami Satyananda do Bihar School of Yoga, da Índia, 'o yoga é a ciência para uma vida correta, e para isso deve ser incorporada ao cotidiano. Funciona em todos os aspectos pessoais: físico, vital, mental, emocional, psíquico e espiritual.
A palavra yoga significa unidade ou união e é derivada da palavra sânscritayuj, que significa juntar. Na última metade do século passado, o Hatha Yoga se tornou o sistema mais conhecido e praticado. No entanto, hoje em dia, a prática tem se resumido somente às posturas, pranayama, mudras ebandhas.'
David Frawley, outro grande autor sobre estudos de yoga, diz o seguinte: 'Hatha yoga é muito mais do que ásana. É um sistema completo e integral de desenvolvimento espiritual para o corpo, mente e alma. Não é apenas um sistema físico sofisticado, mas contém, em profundidade, conhecimento sobre o corpo sutil, seus nadis e chakras. Não se resume somente aos detalhes dos ásanas, mas também, pranayama, mantra e meditação.
O objetivo na prática de ásana no Hatha Yoga tradicional, também se difere daquele das práticas modernas. A prática não serve meramente para nos fazer sentir melhor no plano físico. Ela contém intensas práticas ascéticas para a purificação física e psíquica. É uma via para a iluminação ou auto-realização, e não somente um sistema preliminar baseado no corpo.
Se olharmos o Hatha Yoga hoje, perceberemos que poucos estão realmente praticando e que poucos compreendem do que se trata.' E isto é realmente um problema se o relacionamos com a questão dos rótulos. Hoje em dia, professores induzem alunos a uma certa prática de yoga, como se ela fosse a cura para todos os males.
Cada corpo se adapta melhor a uma forma de praticar. Não existe um método único que sirva para todos os humanos. Talvez o yoga tipo A não seja aconselhável para o corpo X. Isto até poderia ser um ponto positivo para o rótulo do yoga, mas não é por inteiro. O yoga bom é aquele que lhe faz sentir-se bem. Aquele que integra tudo aquilo que você está buscando, sem apelações.
A boa prática deixa você bem disposto, e não cheio de dores nas articulações. A prática completa integra ação, devoção e conhecimento. Não é somente a demonstração seca de um corpo e seus constituintes. Use o seu bom-senso e procure professores com a mente aberta. Que lhe deixem livre para ter suas próprias experiências e fazer suas investigações. Professores que vejam o yoga como uma ferramenta para a liberdade. E não estejam ligados a associações que promovem apenas seus próprios interesses corporativos. Se continuarmos assim, daqui a mais alguns anos todas as palavras em sânscrito terão um proprietário. 
Citando novamente Swami Satyananda do Bihar School of Yoga: 'Os princípios do yoga proporcionam uma verdadeira ferramenta para combater o mal-estar social. Em um tempo em que o mundo parece perdido, rejeitando antigos valores sem poder estabelecer novos. O yoga proporciona meios para as pessoas acharem suas próprias vias para se conectarem com suas essências. Através desta conexão é possível manifestar harmonia e compaixão onde não havia.
Neste ponto, o yoga está bem distante de ser simplesmente exercício físico, ou melhor, é uma maneira para estabelecer uma nova maneira de viver que engloba realidades internas e externas. No entanto, esta maneira de viver é uma experiência que não pode ser compreendida intelectualmente, e se tornará apenas conhecimento vivo através da prática e da experiência.' 
O fim do Yoga ou o Yoga como fim? 
Neste contexto de reducionismo do yoga, percebemos que as práticas estão cada vez mais compartimentadas. Existe aquele que só medita, aquele que só faz o ásana, aquele que só estuda os textos. É preciso perceber que o Yoga é uma prática holística e por isso, envolve toda uma disciplina, toda uma vida voltada para o estado de Yoga.
A prática tem estado com uma aparência de fast food. Onde as pessoas separam uma horinha de seu dia para 'fazer' yoga, como se fosse uma simples aula de ginástica em uma academia. Impulsionados por um mercado e uma sociedade que tem a aparência como principal objeto de desejo. Pessoas são induzidas a transpirar a enquanto fazem a aula. Saindo delas com uma enganosa máscara zen (palavra da moda), e assim impressionando aqueles que também se sentem inclinados a começar a prática.
Versões cada vez mais diluídas do yoga são lançadas para que se possa absorvar a grande massa de praticantes. Distanciando ainda mais os objetivos originais do Yoga. O Yoga se tornou uma simples ferramenta de condicionamento físico. E isto tem gerado inúmeros problemas administrativos aqui no Brasil.
Existe uma grande vontade de órgãos como Conselhos de Educação Física e Fisioterapia em nos regular. Querem que estejamos sob seus domínios, numa tentativa de arrecadar mais dinheiro e também de vaidade. Seria este o fim do Yoga?
Uma filosofia, uma cultura, uma maneira de viver, reduzida ao controle de algum órgão regido por pessoas que não entendem nada disso. Com certeza acabamos chegando a este ponto por conta própria. O desleixo em reduzir o yoga somente a uma pratica física ou aula de anatomia.
Viver em yoga não significa suar sobre o tapetinho ou sofrer com ajustes vigorosos. Como disse antes, a boa prática não faz com que nos sintamos exaustos ou doloridos. A verdadeira prática é aquela que nos conduz a nós mesmos. Yoga é uma ferramenta de autoconhecimento. Ele não é nem mesmo o fim em si mesmo.
Visualize como funcionam os seus cinco sentidos. Os sentidos físicos, limitados. Que só alcançam uma determinada distância, que só funcionam em determinada freqüência, e mais importante, que só funcionam para o lado de fora.
Agora imagine que praticando, você ganha mais um sentido. Um sentido chamado Yoga. Que serve não somente para o externo, mas também para o interno. Para que você possa pouco a pouco perceber a sua própria essência. Para que você possa realizar aquilo que não pode ser percebido pelo toque, pela visão ou pela audição.
Um sentido que talvez possa medir o imensurável. Um sentido que mostra aquilo que é verdadeiro. Tudo aquilo que não está preso ao tempo e espaço. Aquilo que é imperecível. O conhecimento. O conhecimento de si mesmo. Moksa, a liberdade, em relação à ignorância sobre minha própria natureza.
Às vezes não aceitamos bem palavras como iluminação ou liberação. Mas elas representam o conhecimento, são sinônimas. Conhecer a si mesmo é ser livre. 
Existem dois tipos de conhecimento segundo o Vedanta.
O conhecimento adquirido para se realizar alguma coisa. Este conhecimento não é suficiente em si mesmo. É necessário colocá-lo em prática. Por exemplo, a prática de ásanas. É preciso colocar em prática, repetir, até alcançar o domínio sobre a postura. Mas é um conhecimento, como dito, que não se suporta, que não conduz a um fim. 
O conhecimento de fatos é o outro tipo. Ele é suficiente. O conhecimento daquilo que eu sou basta em si mesmo. Ele não é ponte para outro conhecimento. O conhecimento é o fim. Ele leva a liberdade. Por isso o Yoga também não é um fim em si. Ele é este sentido, esta ferramenta que podemos usar a nosso favor.
Uma ferramenta para a transformação que ocorre através do conhecimento e não simplesmente da ação. É necessária uma transformação na atitude. A modificação desta atitude, modifica a maneira de encarar a própria vida.
O objetivo se torna amadurecer a mente para o autoconhecimento. Para que neste caminho de Yoga, ao me deparar com a verdade, possa reconhecê-la. Não adianta somente repetir, ou escutar, ou ler. Deve-se haver capacidade de entender.
E uma vez conhecendo a minha própria natureza, a minha busca se encerra. Uma vida de yoga envolve disciplina, um estilo de vida onde eu possa compreender a minha mente. A mente deve tornar-se uma ferramenta que não cause problemas para mim.
A liberdade e capacidade de escolhas que se tornam melhores. Isso não significa negar os papeis sociais, mas ter um compromisso comigo mesmo para o estudo, meditação, prática física e minha relação com o Absoluto. É uma vida que prepara para o caminho de autoconhecimento. Para que a vida faça sentido. Você já se perguntou o verdadeiro sentido de praticar Yoga?

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Yoga sūtras à luz de Vedānta



Introdução
Para muitos praticantes, o Yogasūtra obra seminal de Patañjali, é visto como um dos textos mais importantes dentro desta tradição. Porém, a bem da verdade, devemos lembrar que este tratado não contém ideias originais: suas bases estão firmemente fincadas na tradição védica.
Muitos pensam que Patañjali tenha “inventado” este sistema quando de fato, ele apenas reúne este corpo de conhecimento e o coloca como um sistema prático.
No estilo literário dos sūtras são retirados os excessos e mantido apenas o conteúdo necessário para que a mensagem seja compreendida à luz do seu devido contexto. A interpretação de um sūtra é algo bastante “perigoso” porque o intérprete pode “puxar a sardinha” para diversas direções. O que vemos, presentemente, é que esta obra é apenas traduzida por estudiosos que nem sempre estão conectados com a tradição da qual o Yoga nasceu.
Isso deixa muito espaço para especulação vazia e interpretações duvidosas e deixa os leitores, às vezes, com dúvidas quanto ao significado dos aforismos. Para entendermos os Yogasūtras, primeiro temos que entender bem a palavra Yoga. Para isso vou utilizar as primeiras linhas dos versos de saudação a Patañjali usados antes do estudo deste texto:
Yogena cittasya padena vacam malam śarirāsya ca vaidyakena Yo’pakarot tam pravaram muninam Patañjalim prañjaliranato’smi.
“Eu reverencio Patañjali, especial entre todos os sábios, que elimina os obstáculos da mente, da comunicação e do corpo, através do Yoga, gramática e da medicina.” Então, yogena (através do yoga) apakarot (eliminou) yaḥ (esta) malam (impureza) de cittasya (mente), de vacam (fala), padena (através do estudo da gramática) e śarirāsya (do corpo), vaidyakena (através da medicina).
Yoga é a disciplina que purifica a mente. A mente é chamada de antaḥkaraṇa, ou literalmente, instrumento interno. Aquele instrumento que me permite estabelecer uma relação com o mundo externo. Este antaḥkaraṇa é subdividido em quatro partes: Manaḥ (mente), buddhi (intelecto), citta (memória) e ahankara (ego).
É neste antaḥkaraṇa que estão as “impurezas”. É necessária bastante atenção com esta palavra, pois não há pensamento impuro, sentimento impuro, ou julgamentos impuros. A palavra impureza aponta, aqui, para um obstáculo ou uma distração que impede a visão clara sobre a minha natureza. Estas impurezas são os vṛttis (julgamentos, projeções, oscilações) oriundas da minha mente, sobre as quais Patañjali falará no segundo sūtra.
Através do estudo da gramática da língua (sânscrito, no caso) são eliminadas as impurezas da fala. Patañjali toca neste assunto, pois as nossas vidas são estabelecidas em relações com outras pessoas (viavahāra). E para que não haja maus entendidos. Que a comunicação seja clara. Através da medicina (vaidya), que é o nome dado a um médico ayurvedico, pois um corpo saudável é um instrumento indispensável para uma vida de Yoga.
Citando a Taittiriya Upaniṣad: “Aquele (Om), surgido dos Vedas imortais, que é o mais proe- minente dentre os Mantras védicos e que encerra todas as formas é Indra (aquele que governa a mente). Que ele me fortaleça com inteligência. Que eu possa usufruir da imortalidade. Que meu corpo esteja capacitado (para o conhecimento). Que minha língua seja bem doce (que eu fale sem ofender). Que através dos meus ouvidos eu possa escutar repetidamente (as escrituras).” (Cap I, seção IV).
Ao esclarecer todos estes pontos, fica mais fácil entender o porquê Patañjali começa o seu tratado com a palavra “atha”. O primeiro capítulo do Yogasūtra fala sobre o objetivo da disciplina. Por isso é chamado de sadhya pādaḥ ou samādhi pādaḥ.
A palavra sadhya significa objetivo. O seu radical vem de dhanu, que significa arco. Então, de forma simbólica, colocando-se a flecha (sadhaka – você) no arco (sadhana – a disciplina), atinge-se o objetivo (sadhya).

Samādhi pāda  
atha yogānuśāsanam || 1 ||
Então, o ensinamento do Yoga.
É interessante vermos que o tratado começa com esta palavra “então”, ou também traduzida como “agora”. Estas palavras apontam para o fato de que antes aconteceu alguma coisa, e que, agora o Yoga começa. O Yoga começa, no sentido de que agora há mumukṣutvam, ou seja, o desejo por liberdade ou o desejo por autoconhecimento. É dito nos Vedas que existem quatro puruṣarthas, ou seja, quatro objetivos (arthas) na vida de um ser humano (puruṣa). Estes são: artha (segurança), kāma (prazer), dharma (uma conduta correta e honesta) e mokṣa (liberdade ou autoconhecimento).
Para que a verdadeira vida de Yoga comece é necessário que a pessoa tenha se dado conta que o sentimento de plenitude ou adequação em relação ao mundo não surge pela conquista de objetos que lhe tragam a sensação de segurança ou prazer, mas que estes já são inerentes à ela, bastando apenas que ela tenha a capacidade de se ver claramente. Então livre do condicionamento de que os objetos são as fontes de felicidade, a pessoa pode se dar conta de que esta felicidade é sua própria natureza. Basta que ela tenha este desejo firme e honesto pelo autoconhecimento.
A palavra atha, também aponta para algo auspicioso. Dizendo: “agora é o momento auspicioso para o estudo do Yoga.” A palavra ganha o valor da sílaba Om, como colocada no Mantra da Taittirīya Upaniṣad: “Om é Brahman. Oṁ é tudo isto. Esta palavra, Om, é de fato, uma palavra de aceitação e anuência. Ademais (os sacerdotes) fazem recitar (aos deuses) as seguintes pala- vras de condução: “Oṁ, recite (aos deuses)”. (O oficiante do Sāma Veda) entoa os Sāma-Mantras começando com Oṁ. (O oficiante do Ṛg Veda) entoa ao śāstras (Ṛg Mantras) pronunciando Om som. (O oficiante do Yajurveda) expressa a permissão pronunciando Oṁ. (O oficiante do Atharvanaveda) dá a permissão pronunciando Oṁ. O sacerdote permite a realização do ritual Agnihotra pronunciando Om. Ao recitar os Vedas, desejando aprender, O brâmane entoa Oṁ com o pensamento “Que eu alcance o conhecimento Védico.” Ele certamente alcança Brahman.” (Cap I, seção VIII)
Em seguida vem a palavra “yogānuśāsanam”, que na verdade é um composto de três palavras: “então o Yoga será ensinado, estudado (que vem do radical śās, que é o mesmo radical da palavra śāstra) com o prefixo anu, que significa de acordo, ou segundo.” Então: o Yoga será ensinado de acordo com os Śāstras, ou aquilo que está nos Vedas. E os Vedas apontam para mokṣa. O meio para se “atingir” mokṣa é dado no segundo sūtra. Chamamos de meio porque o objetivo não é simplesmente ter uma mente disciplinada. Mas esta disciplina serve para algo mais.
yogaścittavṛttinirodhaḥ || 2 ||
“Yoga é a cessação [da identificação] com os cittavṛttis”.
Aqui Patañjali define o que é esta disciplina chamada Yoga. Normalmente este sūtra é traduzido como o “controle da mente”, mas novamente temos que atentar para o que é este controle. Na palavra nirodhah, está o radical rudh. Rudh significa controlar sem esforço. Controlar naturalmente. Usando o esforço quando necessário. Mas mesmo entendendo este radical, a compreensão deste sūtra fica um pouco superficial.
Na Bhagavad Gītā, Kṛṣṇa define o Yoga da seguinte forma:
Tam vidyādduhkhasaṁyogaviyogaṁ yogasañjñitam sa niscayena yoktavyo
“Que seja sabido que esta dissociação da associação com a dor é chamada Yoga. Yoga deve ser seguido com determinação e sem uma mente que tenha indiferença.”
O sofrimento é fruto de nossa identificação com os vrttis (julgamentos, pensamentos, projeções...). Quando me identifico com um destes objetos, automaticamente me vejo limitado à for- ma e atributo que vem junto deste. Existem dois tipos de objetos criados pela mente, citados no décimo capítulo da Pancadaśi:
Antarmukhahamityesa vrttiḥ kartaramullikhet Bahirmukhedamityeṣa bahyam vastvidamullikhet (6)
“O pensamento interno da mente (na forma de) “eu” faz aparecer o agente da ação. O (pensamento) externo (na forma de) “isto” faz aparecer o objeto externo.”
Enquanto estou identificado com estes objetos, não enxergo aquilo que é a base destes mesmos objetos, que sou eu. Então para realizar a minha natureza, é necessário ir além das identificações com os objetos. Por isso este controle da mente não significa pensar de uma forma definida, ou parar de pensar. Mas não se associar aos pensamentos ou sentimentos. Não assumir as formas deles. Esta é a disciplina!
Patañjali fala sobre o objetivo desta disciplina, agora, no terceiro sūtra:
tadā draṣṭuḥ svarūpe’vasthānam || 3 ||
“Então, há a permanência na natureza do sujeito”
Para entendermos este sutra, é necessário termos compreendido a fundo a questão de não associação com os objetos. É aqui que isto faz sentido. Foi dito que se estabelecem dois tipos de pensamentos: um classificado como aham (eu) e outro classificado como idam (aquilo). Para um pensamento ser pensado, é necessário que haja uma base para eles existirem. Esta base sou Eu. Este Eu não é o pensamento eu, mas é aquele que faz com que este eu exista. Da mesma forma, este Eu sustenta o pensamento idam (aquilo). Normalmente o pensamento idam não é o maior dos problemas. Tudo aquilo que vem de fora e é captado pelos meus sentidos é classificado na minha mente como idam. Aquilo que é diferente de mim. Uma porta, um carro, outra pessoa, etc. Geralmente não há uma identificação com este tipo de objeto. O problema surge com os pensa- mentos “internos”. Um sentimento, uma emoção ou julgamento. São nestes objetos que estabeleço minha identidade. Então me associo ao atributo destes pensamentos.
Quando isto acontece, não enxergo claramente aquilo que sustenta o pensamento, o verdadeiro Eu. Por isso no segundo sūtra podemos entender: “Yoga é esta disciplina ou o estado no qual não estou identificado com o conteúdo da mente.” A questão é que, quando a mente não identifica nada, fica perdida. Este Eu, não é um objeto, mas é o sujeito que percebe todos os objetos. Este Eu é livre de qualquer tipo de atributo.
E quando a mente se perde, se abre espaço para especulações e dúvidas sobre como este Eu será conhecido. De fato, este Eu, não será conhecido pela mente. É dito nos Vedas que a mente é o veículo para o autoconhecimento, mas que, ao mesmo tempo, o autoconhecimento não se dá através da mente. Exatamente porque a mente só funciona através de nomes e formas. E quando ela se depara com algo que é livre de qualquer tipo de qualidade, se perde.
Śankara comenta na Muṇḍaka Upaniṣad: tattva darśana upaya yogaḥ.
O suporte (upaya) para a visão (darśana) daquilo que é real (tattva) é Yoga. Então (tadā), para que eu veja (draṣṭuh) e permaneça (avasthānam) na minha própria natureza (svarūpe), é necessário este suporte que é a disciplina de Yoga.

Citemos a Gītā mais uma vez:
Yuñjannevam sadātmānam yogī niyatamānasah śāntiṁ nirvānaparamāṁ matsaṁsthāmadhigacchati. (Cap 6, 15)
“Desta maneira, tendo a mente disciplinada, o yogi, mantendo sempre a mente (no Eu), alcança a paz que é a liberação, que é sua própria natureza.”

Desta forma, Patañjali relaciona os sūtras dois e três de forma extraordinária nos apontando para o meio e para o objetivo de uma vida de Yoga. Não podemos dizer que o restante da sua obra não seja importante, mas podemos dizer que o que vem depois é um detalhamento de tudo aquilo que está compreendido nestes três primeiros sūtras. Somente entendendo bem esta base é que o estudo de todo o tratado fará realmente sentido.